O ciclo da Seleção Brasileira rumo à Copa do Mundo de 2026 ganha um novo capítulo com a chegada de Carlo Ancelotti ao comando técnico da equipe. Mas o prestigiado treinador italiano, sonho antigo da Confederação Brasileira de Futebol (CBF), deve assumir o cargo em um momento de extrema turbulência – tanto no cenário político do futebol brasileiro quanto na sua trajetória pessoal.
Mesmo antes de vestir oficialmente o verde e amarelo, Carlo Ancelotti carrega um imbróglio judicial que pode repercutir durante sua gestão. O técnico responde na Espanha por dois crimes de fraude fiscal, com pedido de pena de até quatro anos e nove meses de prisão. A acusação do Ministério Público espanhol aponta que ele omitiu rendimentos de direitos de imagem entre 2014 e 2015, em sua primeira passagem pelo Real Madrid, desviando valores para empresas de fachada no exterior.
Embora a defesa alegue que Ancelotti apenas seguiu orientações do clube e já tenha quitado o valor devido, a promotoria sustenta que houve “fraude, ocultação e omissão”. Ainda que uma eventual condenação dificilmente resulte em prisão, o caso levanta dúvidas sobre a estabilidade jurídica e moral que o treinador levará para o novo cargo.
CBF: entre liminares, acusações e incertezas
Se fora do Brasil o treinador italiano precisa enfrentar a Justiça, dentro do país ele aterrissa em um cenário institucional caótico. A CBF voltou a viver uma crise política grave com a segunda destituição de Ednaldo Rodrigues da presidência da entidade, após denúncias de que a assinatura de Antônio Carlos Nunes Lima – conhecido como “Coronel Nunes”, ex-presidente da CBF – foi falsificada, uma irregularidade que invalida o acordo para sua permanência no cargo.
O documento, supostamente assinado pelo octogenário Coronel Nunes, ex-presidente da CBF, foi questionado judicialmente com base em laudos periciais e relatórios médicos que atestam sua condição de saúde debilitada e graves problemas cognitivos. A Justiça do Rio de Janeiro anulou o acordo homologado pelo ministro Gilmar Mendes no STF e nomeou Fernando Sarney, um dos vice-presidentes da entidade, como interventor para organizar novas eleições.
O presidente afastado começou a perder apoio interno após acusações de assédio moral, má gestão e suspeitas de favorecimento em contratos da CBF na imprensa. Os bastidores apontam para um embate de poder entre figuras influentes do Judiciário, como Gilmar Mendes, do STF, e Luiz Zveiter, desembargador do Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro e ex-presidente do Superior Tribunal de Justiça Desportiva.
Para relembrar, em dezembro de 2023, quando o TJ-RJ determinou o afastamento de Ednaldo Rodrigues da presidência da CBF, houve especulações sobre a influência de Luiz Zveiter na decisão, especialmente por conta da atuação política de seu filho, Flávio Zveiter, que se opõe ao presidente afastado novamente e demonstrou interesse em sucedê-lo. Já a recondução de Ednaldo Rodrigues ao cargo pelo ministro Gilmar Mendes também gerou comentários no meio esportivo, considerando que o Instituto Brasileiro de Ensino, Desenvolvimento e Pesquisa (IDP), do qual o ministro é sócio e fundador, mantém desde 2023 um contrato com a CBF. Além disso, o ministro teve participação na indicação de profissionais que hoje integram cargos de diretoria dentro da entidade.
O técnico certo no momento errado?
A chegada do treinador italiano, marcada para o dia 26 de maio, coincide com esse momento de incerteza. Logo no primeiro dia de trabalho, ele terá que convocar os jogadores para as partidas contra Equador e Paraguai, válidas pelas Eliminatórias da Copa do Mundo. Mas, com a cúpula da CBF dividida e o comando da entidade sob disputa judicial, não está claro quem terá autoridade final sobre decisões estratégicas.
Além disso, paira no ar a dúvida: até que ponto Carlo Ancelotti, conhecido por seu perfil sereno e técnico, terá segurança para comandar uma equipe em um ambiente onde a política interfere diretamente na gestão esportiva? A crise institucional pode não só comprometer o planejamento até 2026, como também afetar a própria permanência do treinador caso o cenário piore.
O futebol à sombra da instabilidade
O momento que deveria simbolizar uma virada positiva para a Seleção Brasileira — com a chegada de um dos técnicos mais vitoriosos do mundo — é, na verdade, ofuscado por conflitos internos e externos. O novo comandante assume uma equipe em reconstrução, após vexames em campo e incertezas nos bastidores.
A aposta de Ednaldo Rodrigues em Carlo Ancelotti pode, ironicamente, se transformar em um trunfo de seus opositores caso o projeto fracasse sob tamanha instabilidade. Resta saber se a Seleção conseguirá, ao menos dentro das quatro linhas, se blindar da crise fora delas. Enquanto o Brasil se prepara para retomar o protagonismo no futebol mundial, a pergunta permanece: será Ancelotti o elo entre a reconstrução da Seleção e a moralização da CBF — ou mais uma peça em um jogo de xadrez que só interessa a poucos?